Republicamos do site DCM esse belo depoimento sobre a triste realidade do preconceito racial no Brasil.
Ele foi aprovado numa seleção porque o outro
candidato era negro. E relembra essa história
Era setembro de 1996. Eu tinha 21 anos, era
recém-casado e tinha um filho recém-nascido. Estava sem emprego e sem dinheiro.
Cursava o último ano da graduação de História na USP. Tinha pouca experiência
profissional e havia mandado meu currículo para um sem número de escolas da
capital e da grande São Paulo. Em outubro, recebi um telefonema para o início
de um processo seletivo em um dos mais tradicionais colégios de São Paulo.
Às 15:00 de uma terça-feira eu e outras dezenas de
candidatos fomos confinados em uma enorme sala de aula. Sentei-me no fundo da
sala, como sempre havia feito quando era aluno. Uma senhora de avental azul
entrou na sala com um pacote de provas. O processo seletivo se iniciou com uma
simples prova de conhecimentos da área de História. Fui alertado, pela mesma
senhora, que qualquer erro faria o candidato ser eliminado. Com a ajuda de
alguns candidatos as provas foram distribuídas e recebemos todos o tempo de uma
hora e meia para responder vinte questões dissertativas de vestibular.
Uma semana e meia depois dessa avaliação fui
comunicado de que havia sido aprovado para a próxima fase do processo seletivo.
Agora deveria ser submetido a testes psicológicos. Nesse momento me municiei de
um enorme sentimento de desprezo por essa escola e esse sistema seletivo.
Talvez isso tenha sido um mecanismo de auto-defesa, não sei… A verdade é que
fui para esses testes com enorme confiança e dois dias depois fui informado que
havia sido aprovado também nesse processo.
A escola estava agora entre dois candidatos – assim
fui informado por telefone – e seria entrevistado pela direção da escola e o
coordenador da área. Minha entrevista foi marcada para as 16:00h. Fui de metrô
até a Vila Mariana e cheguei bem adiantado, por volta das 15:30h (algo típico
de São Paulo, pois o caos no transporte público nos faz ser sempre prevenidos
e, por isso, por vezes chega-se muito adiantado ou muito atrasado a um
compromisso, mas quase nunca pontualmente).
Quando cheguei, fui informado pela secretária que a
entrevista com o outro candidato ainda não havia acabado. Isso significa que me
encontraria pessoalmente com o meu “concorrente”. Confesso que estava nervoso.
Eu precisava muito daquele emprego… Ele seria um divisor de águas para minha
carreira. Tentava, entretanto, me consolar – caso não fosse aprovado – com o
fato de já ter ido longe demais para alguém que nem mesmo era formado em
História. Entretanto, isso ainda não havia me acalmado…
Eram 15:50h quando o outro candidato acabou a
entrevista e abriu a porta da direção. Eu o conhecia de vista. Era também da
USP. Diferentemente de mim, ele já era formado em História. Mais que isso,
tinha mestrado e doutorado. Era um aluno da pós-graduação de um dos melhores
professores daquela Faculdade, o professor Elias Thomé Salibas. Eu já havia
assistido algumas palestras desse meu “concorrente” na própria universidade.
Ele era inteligente, falava muito bem e era muito bem apresentável. Quando ele me viu, abriu um sorriso e perguntou: “Ei! Você não é um bicho da Hsitória?” estendi minhas mãos, o cumprimentei e cordialmente respondi, “Sou… Você é aluno do Elias, não é…?” Ele confirmou, nos despedimos e ele partiu.
Nesse momento me senti absolutamente aliviado… Mais
que isso me senti feliz… Pois tinha agora a certeza de que havia conseguido
aquele emprego… Por maiores que fossem as qualidades profissionais de meu
“oponente” sobre as minhas qualidades, por mais esmagadora que fosse a
superioridade de seu currículo em relação ao meu, eu sabia que eu tinha
conseguido finalmente aquele emprego.
Tudo por uma simples razão: meu “concorrente” tinha
uma pequena diferença em relação a mim, ele era negro. E eu sabia que aquela
escola – frequentada pela mais alta elite paulistana, reacionária e branca –
nunca empregaria um negro como professor, principalmente porque eu, o outro
candidato, era branco e de olhos verdes.
Saí da entrevista com os diários de classe, uma
jornada de 32 horas aulas semanais e um excelente salário. Ao longo da
“entrevista” todas as minhas desvantagens se tornaram vantagens. Eu era jovem e
inexperiente, assim – segundo a diretora e a coordenadora – poderia me tornar
um professor do jeito que a escola queria.
Na verdade, fui contratado porque eu era branco e
de olhos verdes e o outro candidato era negro e de olhos negros. Não nego os
meus méritos pessoais de ter chegado até aquele momento. Estudava (e estudo)
muito, tive esperteza e fui eloquente.
Mas aquele candidato era muito superior a mim em
todos os aspectos profissionais que poderíamos aplicar. Seu único “problema”
era ser negro. Fosse eu o doutor e ele o jovem promissor, meu “concorrente” não
teria nem mesmo passado pelos testes psicológicos. Ele apenas foi tão longe
porque apesar de ser negro, tinha um currículo excelente e era uma pessoa
formidável.
Após lecionar nessa escola minha vida seguiu
adiante… Mudei de cidade… Abri um cursinho na sala da minha casa que iniciou-se
com apenas dezesseis alunos… Hoje sou um empresário e a escola tem mais de
setecentos alunos… Seria muito fácil eu contar uma linda história de mim mesmo
de “empreendedorismo” e “genialidade”… Mas a verdade é que tudo isso só foi
possível devido ao esforço coletivo de todos os professores e funcionários que
trabalharam e trabalham comigo.
Por acaso tive alguns méritos pessoais?
Possivelmente sim… Em outros casos, alguns decisivos, tenho certeza que fui
julgado pela minha aparência.
Tudo nos leva, enfim, a um final de tarde na cidade
de Bauru. Estava frio e começava a garoar. Dirigia pela rua Araújo Leite em
direção à minha residência. Na minha frente havia um carro BMW. Era possível
ver com clareza que o condutor era branco de cabelos castanhos, sua esposa era
loira e seu filho (loirinho) estava no banco traseiro apoiando seus braços
entre os bancos dianteiros, certamente conversando com os pais.
O carro acelerou e ultrapassou uma carroça
conduzida por um casal com seu filho fazendo o mesmo gesto do garoto da BMW, só
que na carroça todos eram negros… estavam no relento e desagasalhados. Enquanto
a BMW assumia a frente da carroça acompanhei atentamente a cena se fechando e
se encaixando… Tudo perfeitamente… Como um contínuo processo que explicava a
trágica essência desse país, dessa sociedade e de minha e de outras milhares de
vidas… Vi tudo através de meus olhos verdes…
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