Carta ao doutor Sócrates sobre o Brasil careta
Sim, doutor, aqui na terra vão
jogando futebol, tem muito mimimi, muito samba e rock'n'roll, só quero lhe
dizer, Magrão, que a coisa aqui está careta, sobra quase nada de maluquice e o
país só faz curvas perigosas à direita. Rapaz, que fase, que doideira, que
merda, desculpa ai, família brasileira, que indecência.
Mas veja que do caralho: o Blatter,
da Fifa pediu o boné, caiu fora,Marin está preso (leia mais adiante
doutor) e o Del Nero tenta, no máximo, um golpe para ficar no poder da
presidência da CBF. Sem chances. Qualquer negociata, e não são poucas, do Marin
atingem esse infeliz de picaretagens tantas ainda na direção da Federação
Paulista de Futebol.
No
que digo, amigo Sócrates, logo você, irmão, que viu como a ideia de Democracia
Corinthiana no gramado foi mais pedagógica do que mil horas de sala de aula de
Educação Moral e Cívica dos assassinos da Ditadura, logo você, a própria ideia
de utopia com a camisa número 8 mais genial de todos os tempos, logo você,
Magrão, saiba que o Brasil encaretou de vez, que erro, que passa?
Óbvio que temos nos falado nos
terreiros, como naquela madruga (rindo até agora) em Duque de Caxias, Baixada
Fluminense, lembra que deu até de calcanhar na bola da criança que passou entre
nós, aquele menino com a camisa do Barcelona? Sim, Magrão, aqui na terra estão
jogando futebol e os guris não lembram mais dos nossos times, só pensam em
Champions League, repare no tamanho do prejuízo histórico.
Aqui vai mais uma cartinha, velho,
desculpa este nordestino desgraçadamente epistolar, rapaz. Nada como uma carta
de amor ou amizade, Magrão, só uma carta transmite, pelas maltraçadas linhas, o
real sentimento dos homens que perderam amigos... Amigos cujas ausências
desmantelaram uma narrativa de estar no mundo. Quando partiu, doutor, vaguei
perdido por São Paulo uns dez dias, procurando fiapos dos nossos assuntos e
ideias das nossas crenças e motivos. Sentava ali na Mercearia São Pedro e o
esperava... Naquela mesa está faltando ele... E a saudade dele... Está doendo
em mim... Que falta faz a esse Brasil caranguejo que só cisca para trás!
O pastoril está cada vez mais sacro e nada profano,
melancólico, e o Velho Faceta e suas gostosas pastoras deram lugar aos
pilantras profissas, falsos profetas que enganam os pobres em nome de línguas
de Pentecostes. Ladrões da fé da massa.
É, caro amigo Sócrates, o jogo anda
truncado: o avanço ficou para as cucuias, lá nas primeiras gestões da turma do
cordão encarnado (vermelho), nesse imenso pastoril brasileiro. O cordão azul
hoje deita e rola. O pastoril está cada vez mais sacro e nada profano,
melancólico, e o Velho Faceta e suas gostosas pastoras deram lugar aos
pilantras profissas, falsos profetas que enganam os pobres em nome de línguas
de Pentecostes. Ladrões da fé da massa.
Desculpa, doutor Sócrates, nem gosto
de ser tão incisivo assim; penso logo na minha mãezinha hoje evangélica, assim
como metade da família. Mas é que reparo em cada picaretagem pseudo-pentecostal
que só vendo, amigo. Avimaria. E a crise econômica faz dos falsos profetas mais
filhos da puta, perdão, ainda, eles amplificam a demonização sobre os costumes.
Vivem da ideia do diabo, este sim um inocente que não tira um centavo da
pobreza brasileira, amém. Nunca precisamos tanto do diabo como agora. O diabo é
o único que não cobra pedágio, mesmo que o usem para roubar a pobreza.
Contradições
Futebol Clube
E o festival de contradições de
sempre movendo a história, doutor Sócrates: o governo supostamente de esquerda
com cartilha pelo avesso, Quinca Mãos de Tesoura cortando tudo e a direitona, que deveria
amar filosoficamente a tesourada, chiando pacas, dá
pra entender? Tudo na base do farinha pouca meu pirão primeiro. Que classe
média fuleira na filosofagem da existência.
Quinca Mãos de Tesoura, estou fora. Por essas
e por outras é que eu sigo devoto do meu santo Quincas Berro D´água, o
velho-menino baiano por excelência, o branco dos olhos tingido de vermelho por
brasas do delírio, coração maneiro, o jeito leve de pedir passagem a quem de
fato. Só respeita os orixás e os deuses que dançam! Certíssimo, grande Jorge
Amado, o autor baiano que nos deixou um legado de travessuras e possibilidades
de reinvenções. Como a ideia do Brasil que apostamos, o Brasil perdido que
buscamos...
Quero os clichês do Brasil de volta,
camarada. É tudo que peço e rogo, Magrão. O pior que aconteceu é que roubaram
até nossos clichês, como um país cordial —leia o belo artigo do Luiz Ruffato aqui mesmo neste
jornal. Pela volta dos clichês, pois somos bons nisso, somos um povo
alegre e inzoneiro, como a canção popular nos fez ouvir nos tantos benditos. E
não perdemos de tudo isso, baita erro também achar que o Brasil é só violência
e estatísticas negativas. O Brasil, contradições à parte, é do caralho, país
incrível.
Corinthians,
de novo
Porra, doutor, viu, viste o
Corinthians? Sei que tinha, tinhas, algo melhor para fazer nesse baile pós-vida
e mais-valia na poeira das estrelas. O mais maluco, amigo, o Grêmio jogando um
futebol bonito até os dez minutos do primeiro tempo. Esquece. Segue o jogo, o
Milton Leite, nosso narrador, te manda um abraço. Aqui na terra vão jogando
futebol... Grêmio 3x1, doutor, esquece.
Quero os clichês do Brasil de volta, camarada. É
tudo que peço e rogo, Magrão. O pior que aconteceu é que roubaram até nossos
clichês, como um país cordial.
Magrão, te contei não? O Blatter renunciou, juro! José Maria Marin
(ex-CBF), aquele que dedurou o camarada Herzog ainda na Ditadura Militar, está em cana. Xadrez suíço como a grana
naturalizada dele, mas já é alguma coisa. O resto, fala com o nosso amigo Juca Kfouri, ele dá a letra, Juca
é o responsável por não desistirmos nunca de tais apurações. Fala com o Juca,
ele te conta tudo, sabe que sou mais do discurso dos fragmentos amorosos...
Magrão, falar nisso, vi uma mulher
hoje na tua barraca em Copacabana, vixe, que, sei lá, que aniquilamento da
humanidade. Danada. A barraca “Doutor Sócrates” está de pé no posto 6, mas nem
sempre, o dono é sábio, acredita, como a gente, no ócio criativo. Porra,
doutor, que saudade, mas sem mimimi, por supuesto, fui lá naquele terreiro de
Duque de Caxias só pra gente não se perder de vez de vista, a poeira das
estrelas é uma maluquice ai por onde fez morada, fez, fizeste.
Brasil
careta, desgraça
Doutor, mas sabe qual é a pior? Não
que fôssemos tão cordiais e avançados assim, mas como o Brasil ficou careta. O
país voltou para o armário recomendado ainda nos tempos dos padres jesuítas e
seus colégios. Magrão, vê que aliança maluca, digo uma aliança simbólica: o
pior dos jesuítas que abriram o caminho religioso para os bandeirantes
assassinarem índios agora se unem, sem saber sabendo, com a cruzada evangélica
a favor do extermínio dos de menores, principalmente menores pretos, pobres,
favelados —os novos índios.
Não que fôssemos tão cordiais e avançados assim,
mas como o Brasil ficou careta. O país voltou para o armário recomendado ainda
nos tempos dos padres jesuítas e seus colégios.
E prendam os suspeitos de sempre,
como dizia nossa filósofa Hannah Arendt, me sopra aqui minha amiga Pinky
Wainer. E matem, quem se importa com essa gente?
Os pentecostais do Congresso Nacional
(não os protestantes legítimos que amam a Deus) estão para a matança de pretos,
pobres e favelados assim como os jesuítas estavam, de alguma forma, para o
extermínio indígena.
Se ficou difícil entender, eu só
queria dizer uma coisinha de nada: como alguém religioso pode ser a favor da
morte de meninos, como essa cruzada? Desistiram de educa-los? Os jesuítas, por
mais dissimulados que fossem, pelo menos fingiam, doutor Sócrates, que
acreditavam na educação e nos deixaram alguns exemplos e colégios caríssimos.
Estamos lascados, Magrão, sabe da
parada do anúncio do Boticário, né? Um anúncio de amor
sobre o dia dos namorados. Mó escândalo. Uns falsos evangélicos (isso não procede como
protestante de verdade!), caras que sabem que ganham votos com essa ideia
escrota, amparada numa falsa interpretação da Bíblia. Quem manda a imprensa
brasileira, na crença supersticiosa e obsessiva de derrubar Dilma, dá essa
corda toda aos Cunhas sem culhões da vida!
Ah, doutor, falo só por falar, sabe
mais que ninguém cuma é a parada, vamos em frente. Nos vemos logo adiante, mas
que a caretice e a escrotidão imperam, não há menor dúvida. Resistimos. Beijos,
que saudade, Francisco.
Xico Sá é
autor de “Chabadabadá –aventuras do macho perdido e da fêmea que se acha”
(editora Record), entre outros livros.