Transcrevemos do sitio “Carta Capital” o magnifico
e preciso artigo do Doutor Luigi
Ferrajoli, Pensador e Jurista de fama mundial e o mais categorizado aluno de
Norberto Bobbio.
Existem, no Brasil, garantias do devido
processo legal?
A cultura jurídica democrática italiana
está profundamente perplexa com os acontecimentos que conduziram ao processo
de impeachment da presidente Dilma Rousseff e ao processo
penal contra Lula. Tem-se a impressão de que esses acontecimentos sinalizem uma
preocupante carência de garantias e uma grave lesão aos princípios do devido
processo legal, dificilmente explicáveis se não com a finalidade política de
pôr fim ao processo reformador realizado no Brasil nos anos da Presidência de
Lula e de Dilma Rousseff, que tirou da miséria 40 milhões de brasileiros.
Antes de mais nada, a carência de
garantias constitucionais da democracia política evidenciada pelo impeachment com
o qual foi destituída a presidente Dilma Rousseff, legitimamente eleita pelo
povo brasileiro. O crime imputado é o previsto no artigo 85 da Constituição
brasileira. Apesar de esta norma ser formulada em termos não absolutamente
precisos, parece-me difícil negar, com base em uma interpretação racional, e na
própria natureza do instituto do impeachment, que não existiam os
pressupostos para a sua aplicação. O crime previsto por essa norma é, de fato, um
crime complexo, consistente, conjuntamente, de um delito-fim de atentado à
Constituição e de um dos sete delitos-instrumentos elencados no art. 85 como
crimes-meios.
Pois bem, na conduta de Dilma Rousseff,
admitindo-se que se caracterize um desses sete crimes-meios, certamente não
restou caracterizado o delito-fim de atentado à Constituição. Tem-se, portanto,
a impressão de que, sob a forma de impeachment, tenha sido, na
realidade, expresso um voto político de desconfiança, que é um instituto típico
das democracias parlamentares, mas é totalmente estranha a um sistema
presidencialista como o brasileiro. Sem contar a lesão dos direitos
fundamentais e de dignidade pessoal da cidadã Dilma Rousseff, em prejuízo da
qual foram violadas todas as garantias do devido processo legal, do princípio
da taxatividade ao contraditório, do direito de defesa e da impessoalidade e
imparcialidade do juízo.
Quanto ao processo contra o
ex-presidente Lula, aqui na Itália não conhecemos os autos, senão sumariamente.
Ficamos, todavia, impressionados com a sua estrutura inquisitória, manifestada
por três aspectos inconfundíveis das práticas inquisitivas.
Em primeiro lugar, a confusão entre
juiz e acusação, isto é, a ausência de separação entre as duas funções e, por
isso, a figura do juiz inquisidor que em violação ao princípio do ne
procedat iudex ex officio promove a acusação, formula as provas, emite
mandados de sequestro e de prisão, participa de conferência de imprensa
ilustrando a acusação e antecipando o juízo e, enfim, pronuncia a condenação de
primeiro grau. O juiz Sergio Moro parece, de fato, o absoluto protagonista
deste processo. Além de ter promovido a acusação, emitiu, em 12 de julho deste
ano, a sentença com a qual Lula foi condenado à pena de 9 anos e 6 meses de
reclusão por corrupção e lavagem de dinheiro, além de interdição para o
exercício das funções públicas por 19 anos. É claro que uma similar figura de
magistrado é a negação da imparcialidade, dado que confere ao processo um
andamento monólogo, fundado no poder despótico do juiz-inquiridor.
O segundo aspecto deste processo é a
específica epistemologia inquisitória, baseada na petição de princípio por
força da qual a hipótese acusatória a ser provada, que deveria ser a conclusão
de uma argumentação indutiva sufragada por provas e não desmentida por
contraprovas, forma, ao contrário, a premissa de um procedimento dedutivo que
assume como verdadeiras somente as provas que a confirmam e, como falsas, todas
aquelas que a contradizem. Donde o andamento tautológico do raciocínio
probatório, por força do qual a tese acusatória funciona como critério
prejudicial de orientação das investigações, como filtro seletivo da credibilidade
das provas e como chave interpretativa do inteiro processo.
Apenas dois exemplos. O ex-ministro
Antônio Palocci, sob custódia preventiva, em maio deste ano, tinha tentado uma
“delação premiada” para obter a liberdade, mas o seu pedido foi rejeitado porque
não havia formulado nenhuma acusação contra Lula ou Dilma Rousseff, mas somente
contra o sistema bancário. Pois bem, esse mesmo réu, em 6 de setembro, perante
os procuradores do Ministério Público, mudou sua versão dos fatos e forneceu a
versão pressuposta pela acusação para obter a liberdade. Totalmente ignorado
foi, ao contrário, o depoimento de Emílio Odebrecht, que, em 12 de junho, havia
declarado ao juiz Moro nunca ter doado qualquer imóvel ao Instituto Lula, ao
contrário do que era pressuposto pela acusação de corrupção.
A terceira característica inquisitória
deste processo é, enfim, a assunção do imputado como inimigo: a demonização de
Lula por parte da imprensa. O que é mais grave é o fato de que a campanha da
imprensa contra Lula foi alimentada pelo protagonismo dos juízes, os quais
divulgaram atos protegidos pelo segredo de Justiça e se pronunciaram
publicamente e duramente, em uma verdadeira campanha midiática e judiciária,
contra o réu, em busca de uma legitimação imprópria: não a subjeção à lei e à
prova dos fatos, mas o consenso popular, manifestando assim uma hostilidade e
falta de imparcialidade que tornam difícil compreender como não tenham
justificado a suspeição.
O juiz Moro, que continua a indagar
sobre outras hipóteses de delito imputadas a Lula, antes da abertura do
processo concedeu numerosas entrevistas à imprensa, nas quais atacou
abertamente o imputado; promoveu as denominadas “delações premiadas”,
consistentes de fato na promessa de liberdade como compensação pela
contribuição dos imputados à acusação; até mesmo reivindicou a interceptação,
em 2016, do telefonema no qual a presidente Rousseff propunha a Lula de
integrar o governo, publicizada por ele sob a justificativa de que “as pessoas
tinham que conhecer o conteúdo daquele diálogo”.
A antecipação do juízo não é, por outro
lado, um hábito somente do juiz Moro. Em 6 de agosto deste ano, em uma
intervista ao jornal O Estado de S. Paulo, o presidente
do Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF-4), perante o qual prosseguirá o
segundo grau, declarou que a sentença de primeiro grau “é tecnicamente
irrepreensível”.
Semelhantes antecipações de juízo,
segundo os códigos de processo de todos os países civilizados – por exemplo os
artigos 36 e 37 do Código Penal Italiano – são motivos óbvios e indiscutíveis
de abstenção e afastamento do juiz. E também no Brasil, como recordou Lenio
Streck, existe uma norma ainda que vaga – artigo 12 do Código da Magistratura
Brasileira de 2008 – que impõe ao magistrado o dever de se comportar de modo
“prudente e imparcial” em relação à imprensa. Os jornais brasileiros, invocando
a operação italiana Mani pulite do início dos anos 90, se
referem à operação Lava Jato que envolveu Lula como sendo a “Mãos Limpas
brasileira”. Mas nenhuma das deformações aqui ilustradas pode ser encontrada no
processo italiano: uma investigação que nenhum juiz ou membro do Ministério
Público italiano que nela atuaram gostaria que fosse identificada com a
brasileira.
São, de fato, os princípios elementares
do justo processo que foram e continuam a ser desrespeitados. As condutas aqui
ilustradas dos juízes brasileiros representam, de fato, um exemplo clamoroso
daquilo que Cesare Beccaria, no § XVII, no livro Dos Delitos
e das Penas, chamou “processo ofensivo”, em que “o juiz – contrariamente
àquilo por ele chamado “um processo informativo”, onde o juiz é “um
indiferente investigador da verdade” – “se torna inimigo do réu”, e “não busca
a verdade do fato, mas procura no prisioneiro o delito, e o insidia, e crê
estar perdendo o caso se não consegue tal resultado, e de ver prejudicada
aquela infalibilidade que o homem reivindica em todas as coisas”; “como se as
leis e o juiz”, acrescenta Beccaria no § XXXI, “tenham interesse não em buscar
a verdade, mas de provar o delito”. É, ao contrário, na natureza do juízo, como
“busca indiferente do fato”, que se fundam a imparcialidade e a independência
dos juízes, a credibilidade de seus julgamentos e, sobretudo, juntamente com as
garantias da verdade processual, as garantias de liberdade dos cidadãos contra
o arbítrio e o abuso de poder.
Acrescento que mais de uma vez
expressei minha admiração pela Constituição brasileira, talvez a mais avançada
em temas de garantias dos direitos sociais – os limites orçamentários, a
competência do Ministério Público quanto aos direitos sociais, a presença de um
Procurador atuante no Supremo Tribunal Federal – a ponto de constituir um
modelo daquilo que chamei de “constitucionalismo de terceira geração”. Foi em
razão da atuação desse constitucionalismo avançado que no Brasil, como recordei
no início, se produziu nos últimos anos uma extraordinária redução das
desigualdades e da pobreza e uma melhora geral das condições de vida das
pessoas.
Os penosos eventos institucionais que
atingiram os dois presidentes, que foram protagonistas desse progresso social e
econômico, trouxeram à luz uma incrível fragilidade do constitucionalismo de
primeira geração, isto é, das garantias penais e processuais dos clássicos
direitos de liberdade: uma fragilidade sobre a qual a cultura jurídica e
política democrática no Brasil deveriam refletir seriamente. Sobretudo, esses
acontecimentos geram a triste sensação do nexo que liga os dois eventos – a
inconsistência jurídica da deposição de Dilma Rousseff e a violência da
campanha judiciária contra Lula – e, por isso, a preocupação de que a sua
convergência tenha o sentido político de uma única operação de restauração
antidemocrática.
Essa sensação e essa preocupação são
agravadas pelas notícias, referidas de modo concordante e sereno em muitos
jornais, que os juízes estariam procurando acelerar os tempos do processo para
alcançar o mais rápido possível a condenação definitiva; a qual, com base na
“Lei da Ficha Limpa” impediria Lula de candidatar-se às eleições presidenciais
de outubro de 2018. Tratar-se-ia de uma pesada interferência da jurisdição na
esfera política, que teria o efeito, entre outros, de uma enorme
deslegitimação, antes de mais nada, do próprio Poder Judiciário.
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