Transcrevemos abaixo uma brilhante e precisa aula de Direito Penal, ministrada pelo ex-Promotor de Justiça o Mestre Dr. Cezar Bitencourt.
Delação premiada: favor
legal antiético
Delação
premiada consiste na redução de pena (podendo chegar, em algumas hipóteses, até
mesmo a total isenção de pena) para o delinquente que delatar seus comparsas,
concedida pelo juiz na sentença condenatória, desde que sejam satisfeitos os
requisitos que a lei estabelece. Trata-se de instituto importado de outros
países[1],
independentemente da diversidade de peculiaridades de cada ordenamento jurídico
e dos fundamentos políticos que o justificam.
Por
esse instituto premia-se o participante delator que trai seu comparsa, com a
redução de um a dois terços da pena aplicada, ou, em alguns casos, podendo
chegar ao perdão judicial.
Com
efeito, a eufemisticamente denominada delação premiada, que foi inaugurada no
ordenamento jurídico brasileiro com a Lei dos Crimes Hediondos (Lei 8.072/90,
artigo 8º, parágrafo único), proliferou em nossa legislação esparsa, atingindo
níveis de vulgaridade. Enfim, iniciou-se a proliferação da “traição
bonificada”, defendida pelas autoridades como grande instrumento de combate à
criminalidade organizada, que, finalmente, recebe sua definição legal com a Lei
12.850/2013.
O
fundamento invocado é a confessada falência do Estado para combater a dita
“criminalidade organizada”, que é mais produto da omissão dos governantes ao
longo dos anos do que propriamente alguma “organização” ou “sofisticação”
operacional da delinquência massificada. Na verdade, virou moda falar crime
organizado, organização criminosa e outras expressões semelhantes, para
justificar a incompetência e a omissão dos detentores do poder, nos últimos 20
anos, pelo menos.
Chega
a ser paradoxal que se insista numa propalada sofisticação da delinquência; num
país onde impera a improvisação e tudo é desorganizado, como se pode aceitar
que só o crime seja organizado? Quem sabe o Poder Público, num exemplo de
funcionalidade, comece combatendo o crime desorganizado, já que capitulou ante
o que resolveu tachar de crime organizado; pelo menos combateria a
criminalidade de massa, a criminalidade violenta, devolvendo a segurança à
coletividade brasileira, que tem dificuldade até mesmo de transitar pelas ruas
das capitais. Está-se tornando intolerável a inoperância do Estado no combate à
criminalidade, seja ela massificada, organizada ou desorganizada, conforme nos
têm demonstrado as alarmantes estatísticas diariamente.
Como
se tivesse descoberto uma poção mágica, o legislador contemporâneo acena com a
possibilidade de premiar o traidor — atenuando a sua responsabilidade
criminal — desde que delate seu comparsa, facilitando o êxito da investigação
das autoridades constituídas. Com essa figura esdrúxula o legislador brasileiro
possibilita premiar o “alcaguete”, oferecendo-lhe vantagem
legal, manipulando os parâmetros punitivos, alheio aos fundamentos
do direito-dever de punir que o Estado assumiu com a coletividade.
Não
se pode admitir, sem qualquer questionamento, a premiação de um delinquente
que, para obter determinada vantagem, “dedure” seu parceiro, com o qual deve
ter tido, pelo menos, uma relação de confiança para empreenderem alguma
atividade, no mínimo, arriscada, que é a prática de algum tipo de delinquência.
Estamos, na verdade, tentando falar da moralidade e justiça da postura assumida
pelo Estado nesse tipo de premiação. Qual é, afinal, o fundamento
ético legitimador
do oferecimento de tal premiação?
Convém
destacar que, para efeito da delação premiada, não se questiona a motivação do
delator, sendo irrelevante que tenha sido por arrependimento, vingança, ódio,
infidelidade ou apenas por uma avaliação calculista, antiética e infiel do
traidor-delator. Venia concessa, será legítimo o Estado lançar mão de meios
antiéticos e imorais, como estimular a deslealdade e traição entre parceiros,
apostando em comportamentos dessa natureza para atingir resultados que sua
incompetência não lhe permite através de meios mais ortodoxos? Certamente não é
nada edificante estimular seus súditos a mentir, trair, delatar ou dedurar um
companheiro movido exclusivamente pela ânsia de obter alguma vantagem pessoal,
seja de que natureza for.
Note-se
que, ainda que seja possível afirmar ser mais positivo moralmente estar ao lado
da apuração do delito do que de seu acobertamento, é, no mínimo arriscado
apostar em que tais informações, que são oriundas de uma traição,
não possam ser elas mesmas traiçoeiras em seu conteúdo.
Certamente
aquele que é capaz de trair, delatar ou dedurar um companheiro movido
exclusivamente pela ânsia de obter alguma vantagem pessoal, não terá escrúpulos
em igualmente mentir, inventar, tergiversar e manipular as informações que
oferece para merecer o que deseja. Com essa postura antiética, não se pode
esperar que o delator adote, de sua parte, um comportamento ético e limite-se a
falar a verdade às autoridades repressoras; logicamente, o beneficiário
da delação dirá
qualquer coisa que interesse às autoridades na tentativa de beneficiar-se. Essa
circunstância retira eventual idoneidade que sua delação possa ter, se é que alguma delação
pode ser considerada idônea em algum lugar.
Na
realidade, a praxis tem desrecomendado não apenas o instituto da delação como
também as próprias autoridades que a têm utilizado, bastando recordar, apenas
para ilustrar, a hipótese do doleiro da CPI dos Correios e do ex-assessor do
atual ministro Palocci, que foram interpelados e compromissados a delatar, na
calada da noite e/ou no interior das prisões, enfim, nas circunstâncias mais
inóspitas possíveis, sem lhes assegurar a presença e orientação de um advogado,
sem contraditório, ampla defesa e o devido processo legal.
Inversão
na hierarquia do ordenamento jurídico
Ao longo do tempo temos denunciado que vivemos em um país onde há inversão total do ordenamento jurídico, na medida em que a Constituição Federal, para determinadas autoridades, não passa de peça puramente ornamental, sendo contrariada por leis ordinárias, decretos, resoluções, portarias, e, agora, até por acordo de “delação premiada”, eufemisticamente cognominada de “colaboração premiada” (Lei 12.850/13).
Nos
últimos anos, o legislador contemporâneo tem demonstrado censurável desapreço
pelas garantias constitucionais, e certa predileção em editar diplomas legais
francamente inconstitucionais, e, particularmente, afrontadores de direitos
fundamentais assegurados na própria Constituição. Na verdade, há uma “produção”
excessiva de leis que, a pretexto de combater a impunidade, ignoram a
existência de garantias fundamentais, e algumas até contradizem diretamente as
previsões constitucionais, como ocorre, por exemplo, com a Lei 12.850/2.013.
No
livro Comentários à lei de organização criminosa[2] em que abordamos a indigitada,
imoral e antiética “colaboração premiada”, apontamos algumas nulidades; mas
essas são nulidades e inconstitucionalidades que decorrem do próprio texto
legal, confrontado com a nossa Carta Magna. No entanto, além dessas inconstitucionalidades
textuais, a aplicação, in concreto, do
instituto da “delação”, com certa deturpação interpretativa pode ampliar tais
inconstitucionalidades, dependendo da forma como as autoridades colocam em
prática a utilização do referido instituto.
Nesse
sentido, pelas informações vazadas na mídia, essas nulidades e
inconstitucionalidades são pródigas na “colaboração premiada” celebrada na
“operação lava jato”, com o ex-diretor da Petrobras Paulo Roberto Costa.
Trata-se, a rigor, de um “acordo de colaboração premiada” eivado de nulidades,
mas nulidades absurdamente grotescas, ou seja, decorrentes de negação de
garantias fundamentais impostas pelo Ministério Público (negociador da delação)
a referido réu e ao seu defensor!
Pelo
que vazou, foram violadas, dentre outras, as garantais fundamentais da ampla
defesa, do devido processo legal, do direito ao silêncio, de não produzir prova
contra si mesmo, direito de não se autoincriminar etc. Ou seja, foi imposto ao
“delator” que renunciasse {pode ?!} — a todos esses direitos constitucionais —,
inclusive direitos de ações (afastando a jurisdicionalidade do cidadão).
Afinal, desde quando as garantias fundamentais do direito de ação, do devido
processo legal, da ampla defesa podem simplesmente ser renunciadas por alguém,
ainda mais na imposição de uma delação premiada? Ora, se são garantias contra o
poder estatal, são irrenunciáveis!
Vejamos
algumas pérolas de nulidades e inconstitucionalidades flagrantes que, segundo
nos consta, existem nesse “acordo de delação premiada”:
1) o
delator tem que desistir de todos os habeas corpus impetrados;
2) deve
desistir, igualmente, do exercício de defesas processuais, inclusive de
questionar competência e outras nulidades;
3) deve
assumir compromisso de falar a verdade em todas as investigações (contrariando
o direito ao silêncio, a não se auto-incriminar e a não produzir prova contra
si mesmo);
4) não
impugnar o acordo de colaboração, por qualquer meio jurídico;
5) renunciar,
ainda, ao exercício do direito de recorrer de sentenças condenatórias relativas
aos fatos objetos da investigação.
Reconhecem
que o colaborador tem direito constitucional ao silêncio e a garantia contra a
auto-incriminação. Mas invocam o disposto no artigo 4°, parágrafo 14, da
Lei 12.850/2013, para exigir a renúncia do colaborador nos depoimentos em que
prestar. Em outros termos, invertem a ordem natural da hierarquia de nosso
ordenamento jurídico, e, com um simples acordo, “revogam” a Constituição
Federal.
Menos
mal que o digno e culto ministro Teori Zavascki, ao homologar o acordo de
delação, excluiu todas aquelas restrições que visavam afastar a
jurisdicionalidade, que também é uma garantia de todo cidadão, em outros
termos, assegurou-se o amplo de direito de ação.
Inconstitucionalidade
textual: renúncia ao direito de silenciar (artigo 4º, parágrafo 14)
Uma vez iniciado o processo, sendo o colaborador, induvidosamente, parte no processo, goza de pleno direito ao silêncio. A lei incorrendo em graveinconstitucionalidade estabelece em seu parágrafo 14º do artigo 4º, que ocolaborador renunciará — utiliza-se voz cogente — ao direito ao silêncio, na presença de seu defensor. Ora, o dispositivo legislativo é claramenteinconstitucional enquanto obriga (ou condiciona, o que dá no mesmo) o réu a abrir mão de um direito seu consagrado não apenas na constituição, como em todos os pactos internacionais de direitos humanos, dos quais o Brasil é signatário. Afinal, o réu simplesmente não está obrigado a fazer prova contra si em circunstância alguma, mesmo a pretexto de “colaborar” com a Justiça, ou seja, na condição de colaborador. Afinal, lhe interessa muito mais (lhe é muito mais benéfico) uma sentença absolutória, que a aplicação dos benefícios decorrentes da colaboração.
Mas
não para por aí a coleção de absurdos que emoldura o depoimento do colaborador
em juízo. Com efeito, o parágrafo 12 do artigo 4º prevê queainda que beneficiado por perdão
judicial ou não denunciado, o colaborador poderá ser ouvido em juízo a
requerimento das partes ou por iniciativa da autoridade judicial.
Essa disposição legal é de uma estupidez sem precedentes, além de absolutamente
desnecessária.
Por
um lado, porque repete a hipótese tecnicamente inviável do colaborador não ter
sido denunciado, caso tenha cometido crime ou, de qualquer modo, concorrido
para ele. Caso não o tenha, poderá sempre ser arrolado como testemunha, pelo
que, a disposição é inútil.
Por
outro, o perdão judicial se aplica, repetindo, por ocasião da sentença e,
depois dela, não se pode mais produzir prova no processo! Ademais,
estranhamente, se a regulamentação diz respeito a prova a ser produzida a
respeito de outro processo, não há nenhuma necessidade de regulamentação, pois
qualquer pessoa pode ser testemunha de quem quer que seja, em qualquer
processo!
É
pertinente e persistente a crítica doutrinária de que o Brasil vem legislando
no processo penal de forma a desviar o foco da produção probatória através da
investigação do fato, para concentrar-se na pessoa do próprio investigado como
fonte de prova, transferindo-lhe obrigações — ou, no caso, estimulando-o — a
reconstituição do fato[3]. Não deixa de
ser uma forma indireta de o legislador burlar ou desrespeitar a garantia
constitucional de o cidadão não produzir prova contra si mesmo.
Prende-se
para investigar, prende-se para fragilizar, prende-se para forçar a confissão
e, por fim, prende-se para desgastar, subjugar, ameaçar e forçar a “colaboração
premiada”! Aliás, a própria autoridade repressora reconhece, oficialmente, em
seu parecer, que esse é o objetivo maior das prisões e tem sido exitoso:
arrancar a confissão e forçar a “delação”! Retornamos à Idade Média, quando às ordalhas e a tortura também tinham objetivo de
arrancar a confissão, e também eram cem por cento exitosas! Só falta torturar
fisicamente, por que psicologicamente já está correndo!
Essa
admissão oficial do fundamento das prisões escancara a sua ilegalidade, a sua
arbitrariedade e a sua ilegitimidade! Certamente, não resistirá ao crivo dos
tribunais superiores! Ao menos, é o que se espera em um Estado Democrático de
Direito, que consagra a prisão como última ratio!
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