Uma magna aula! Como de costume, magnifico, brilhante, preciso, decisivo e corajoso o pronunciamento do nobre e exemplar Senador da República, Roberto Requião
Leio, com frequência, opiniões de
juristas, jornalistas e curiosos sobre a importação de teorias do Direito por
parte de promotores e juízes para acusar e condenar os envolvidos em denúncias
de corrupção, principalmente.
No caso do tal “mensalão”, o
único “mensalão” que foi julgado, porque os outros, os do PSDB e do DEM correm
fatalmente para prescrição, por decurso de prazo ou decurso de idade; no caso
do “mensalão” do PT, dizia, importou-se a esdruxularia da “teoria do fato”.
Importação, diga-se, cuja
aplicação ao caso nacional foi duramente criticada pelo próprio criador da
tese, o jurista alemão Claus Roxin.
Nada a ver, disse o teuto.
Nada a ver, disse o teuto.
E daí? Quem estava se
importando, notadamente na mídia, no Supremo, na OAB, no Ministério Público ou
no mercado financeiro com a legalidade da aplicação da teoria?
Afinal o objetivo comum era o de esmagar a cabeça da hidra. Para isso, valia tudo.
Agora, na Lava Jato, os
promotores e os juízes que viajam com uma frequência inquietante aos Estados
Unidos, trouxeram de lá a tal da “teoria da abdução das provas”, para
supervalorizar as chamadas as “provas indiciárias”.
Segundo o doutor em Ciência
Política e mestre em Direito Rogério Dultra, da Universidade Federal
Fluminense, a Lava Jato importou a dita tese do professor de Direto de Harvard
Scot Brewer, que orientou o mestrado de Deltan Dallagnol na universidade
norte-americana.
Dultra explica que a “teoria da
abdução das provas” é na verdade do filósofo norte-americano Charles
Sanders Peirce, tido como o pensador que estabeleceu as bases da semiótica,
ainda no século XIX.
Mas, o que seria a “teoria da
abdução das provas”?
Seria o primeiro momento de um
processo de inferência, isto é, de indução ou dedução, que permite, por
exemplo, com bases em amostras estatísticas, efetuar generalizações. Enfim, com
tal teoria, formula-se uma hipótese geral para explicar determinados fatos
empíricos.
Dultra acusa tanto o orientador
havardiano como o seu aluno brasileiro de distorcer a teoria de Peirce, como o
fez Joaquim Barbosa com a teoria de Claus Roxin. Enfim, mais uma vez o tal do
“jeitinho” pátrio para ajustar o círculo ao quadrado.
No entanto, estabeleço aqui uma
divergência com o professor da Universidade Federal Fluminense e com outros que
buscam em Peirce, Roxin et allia inspirações para os nossos criativos
promotores e juízes.
Na verdade, promotores e juízes
iluminam-se nas orientações de um livro editado em 1484, na Alemanha, ou na
região que viria a ser depois a Alemanha, com a unificação dos principados
teutos por Bismarck, no século XIX.
Antes de declinar o nome do
livro, para não suscitar resmungos precipitados de alguns colegas, vou buscar
no documento medieval algumas orientações. Orientações, sugestões, exemplos e
decisões que servem de manancial, de matriz para a Lava Jato.
Quanto às testemunhas.
Diz o livro que o juiz não deve
levar em consideração quando as testemunhas divergem em seus relatos, pois
basta uma única convergência para considerar os depoimentos verdadeiros,
idôneos.
E quando as acusações das
testemunhas são graves, é preciso apenas um mínimo de evidência para que se
considere o acusado culpado.
Pouquíssimos argumentos, por si
só, já expõem o crime do indiciado, ensina o manual.
Quer dizer: quanto mais
testemunhas arroladas contra o suspeito, e quanto mais graves as acusações,
mesmo que não provadas, mais clara a culpa do denunciado.
Enfim, apenas com base em
testemunhos é lícito que se condene o réu.
Notórios malfeitores e criminosos são aceitos como testemunhas.
As evidências, colhidas nas
oitivas das testemunhas, só podem ser usadas pela promotoria, nunca pela
defesa, pois as evidências têm mais valia em provar uma acusação do que em
refutá-la.
Os indícios colhidos contra os
acusados por depoimentos prestados por perjuros devem ser considerados
como válidos.
Os perjuros, ressalva o manual,
não falam por leviandade, nem por inimizade, tampouco por suborno, e sim pelo
mais puro zelo; assim, mesmo que tenham mentido, que tenham falseado a verdade
dos fatos, há de se considerar válido o seu testemunho.
Tão válido como o de uma pessoa
honesta.
Afinal, tamanho é o mal causado
pelos réus, face as graves suspeitas que pesam sobre eles, que qualquer
criminoso poderá prestar depoimento contra os acusados; até mesmo os servos
contra os seus amos.
Em algumas circunstâncias,
prescreve o manual de 1484, a gravidade das acusações é tal que a causa deve
ser conduzida da maneira mais simples e mais sumária, sem os argumentos e as
contenções dos advogados de defesa.
Enfim, a defesa é um atrapalho
a ser ou contido ou mesmo eliminado.
Quando o réu nega todas as acusações, o juiz deve levar em conta, para considera-lo culpado, três condições: a má reputação do réu, tendo em vista as suspeitas que pesam contra o ele; e evidência dos fatos, mesmo que não haja provas, e o depoimento das testemunhas, ainda que perjuras.
Conforme o manual que inspira
os promotores e os juízes da Lava Jato, o simples boato da má reputação do
acusado já é suficiente para que o juiz o processe e condene-o.
Não são necessários evidências,
suposições e muito menos fatos.
Boatos sobre a má reputação do
réu já bastam para se abrir o processo, julgar e condenar o indigitado.
Boatos, apenas boatos, ainda
que maledicentes, são suficientes para se abrir um processo.
O livro, mesmo ressalvando que
um dos doutores da Igreja, Bernardo de Claraval, falava em fato evidente, para
determinar a verdade das coisas, diz que basta a evidência para provar uma
acusação.
Assim, o indivíduo indiciado
pela evidência dos fatos ou pelo depoimento de testemunhas, ainda que perjuras,
registre-se, quer confesse o crime ou o negue obstinadamente, será condenado.
E já que a culpabilidade está,
em um caso e noutro, pré-estabelecida, o livro recomenda que o processo seja
conduzido de forma abreviada e sumária.
Sem delongas, sem concessão de
tempo para a defesa.
Mais ainda: recomenda
expressamente o “confinamento do acusado na prisão por algum tempo, ou por
alguns anos, caso em, que, talvez, depois de padecer por um ano das misérias do
cárcere, venha a confessar os crimes cometidos”.
Sábios juízes de 1484!
Sapientíssimos juízes de 2017!
Os autores do manual, Heinrich
Kramer e James Sprenger, advertem ainda os advogados dos acusados, recomendando
moderação, pois do contrário poderão também ser considerados suspeitos e
processados.
Esta é a recomendação: se o
advogado defende uma pessoa já suspeita, torna-se a si próprio um defensor do
crime e lança sobre si mesmo não uma suspeita leve, mas uma greve suspeita, e
deverá abjurar publicamente o pecado cometido por defender um criminoso.
Parece que está aqui a origem
de toda a má vontade dos senhores da Lava Jato para com os advogados de defesa
ou com os jornalistas que não fazem parte do clube exclusivo dos vazadores de
notícias.
A reputação pública do acusado
é outro fator que o juiz deve levar em conta, diz o tratado medieval.
O magistrado deve estar atento
ao que a opinião pública pensa e manifesta sobre o suspeito. Se que a opinião
pública pensa não favorece a reputação o indivíduo, ele pode ser considerado
sob forte suspeita de crime.
A difamação –seja o cidadão
culpado ou não da maledicência- é outro critério para se iniciar um processo.
Os juízes devem partir da
premissa que o difamado é, liminarmente, culpado pelo que lhe imputam. Alguém
assim classificado, deverá ser submetido a interrogatório, à prisão por tempo
indeterminado e à tortura, para que confesse o crime.
No entanto, o manual que até
hoje orienta os nossos juízes e promotores, 533 anos depois de sua primeira
edição, pede prudência em relação às delações que, adverte, não são suficientes
em si para uma condenação, porque o demônio pode tê-las inspirado.
Assim, recomenda, as delações
devem ser acompanhadas por outras condicionantes, como a má reputação do
acusado, o depoimento de testemunhas, ainda que perjuras, e pela evidência dos
fatos.
O livro aconselha ainda que o
juiz seja misericordioso. Não com o réu, mas misericordioso para consigo mesmo
e para com o Estado.
Consigo, por ter que julgar
tantos crimes e se expor a tantos malfeitores; para com o Estado porque tudo o
que é feito para a segurança do Estado é misericordioso.
Outra questão que merece dos
autores do manual longa consideração é a chamada suspeita manifesta.
Dizem eles, não basta o
depoimento das testemunhas, não bastam as evidências e nem basta o fato do
acusado já ter sido anteriormente condenado. E preciso também que haja suspeita
manifesta ou grave suspeita de crime.
Kramer e Sprenger socorrem-se
aqui de São Gerônimo, o cenobita e Doutor da Igreja, para quem a esposa poderá
obter o divórcio se houver forte suspeita de que o seu marido esteja traindo-a.
Logo, concluem: a grave suspeita é suficiente para a condenação do suspeitoso.
E há, como bem sabem e agem os
juízes e promotores da Lava Jato, vários graus de suspeita.
Há, por exemplo, a suspeita
provável. Quer dizer, é provável que fulano seja suspeito de ter cometido algum
crime. Mas essa suspeita é ainda considerada leve e os que nela incorrem devem
provar a inocência fazendo penitência, redimindo-se da suposta falta.
Não interessa que a suspeita
seja infundada.
Mesmo assim, caso os suspeitos
não se submetam à purgação do hipotético crime, devem ser condenados. De leve,
a suspeita gradua-se à grave.
Os autores, volta e meia,
retornam à questão da má reputação do suspeito como premissa para considera-lo
suspeito.
E dizem: ainda que nada for
provado contra ele, o fato de ser objeto de difamação pública é suficiente para
a abertura de um processo. E, acautelam, a difamação não deverá necessariamente
provir de pessoas honestas e respeitáveis; o peso é igual quando a calúnia
advém de gente simples e comum ou de criminosos.
Quer dizer, o simples fato de
uma pessoa ser caluniada é suficiente para ela ser processada. E mesmo que nada
se prove, ela deverá ser condenada a atos de penitência e de reparação. Caso a
pessoa repudie a calúnia e não aceite a purgação, porque é absolutamente
inocente, sofrerá graves sanções.
A retenção de acusados ou
suspeitos ou difamados a longos períodos na prisão deverá servir para que
parentes, amigos e pessoas influentes convençam os indigitados a confessarem
seus crimes, prescreve o manual.
A resistência à confissão será
tomada como confissão de culpa; e, no caso de relutância a confessar,
recomendam-se a longa detenção e a tortura.
A pessoa suspeita de um crime
que, mesmo inocente, mas para se livrar da pressão do juiz confessa o delito,
deve ter cuidado para não ser considerada novamente suspeita, já que a
reincidência na suspeição leva à condenação.
Uma vez suspeita, vá lá, mas
duas vezes suspeita é criminosa na certa.
Muito familiar, não é?
Ah, sim. A suspeita manifesta
ou grave suspeita não admite prova ou defesa. A pessoa é condenada e pronto.
É uma espécie de domínio do
fato avant garde.
Um dos capítulos finais do
livro trata da pessoa que é apanhada, denunciada e condenada.
Culpada de crime pela evidência
dos fatos e pelo depoimento de testemunhas, essas pessoas, firme e
constantemente tendem a negar a responsabilidade, ponderam os autores. Então,
insistem os autores, os juízes devem manter essas pessoas no cárcere,
pressionando-as, empenhando-se ao extremo para induzi-las à confissão.
Segundo eles, o “remédio” é
certo, pois não há quem resista ao isolamento, às ameaças, aos apelos das
famílias e ao exemplo de outros acusados que cederam e confessaram.
Mas, observam Kramer e
Sprenger, caso o condenado seja executado e depois se descobre que era
inocente, ele deve ser imediata e solenemente absolvido.
Mas só se for inocente, se o
juiz acreditar que o morto tenha culpa, deve relutar em absolvê-lo.
Por fim, os autores tratam da
justeza dos juízes em negar objeções, apelações, recursos.
Vamos à citação: Feito isso,
que se declare o seguinte: assim agindo, o juiz procedeu devida e justamente, e
não se desviou do caminho da justiça, e de forma alguma molestou indevidamente
o apelante.
Todavia, o apelante, alegando
objeções mentirosas e falsas, tentou, mediante uma apelação indevida e injusta,
escapar da sentença.
Pelo que sua apelação é frívola
e inválida, sem qualquer fundamento, errada no conteúdo e na forma. E como as
leis não reconhecem apelações frívolas, nem são estas reconhecidas pelo juiz,
declara este, portanto, que não admite e nem pretende admitir a mencionada
apelação, nem a reconhece e nem mesmo se propõe a reconhece-la. E dá esta
reposta ao acusado que faz tal indevida apelação….”
No ano do Senhor de 1487, a
prestigiosa Universidade de Colônia, Alemanha, com a chancela do Papa Inocente,
do imperador Maximiliano, que ainda ostentava o título de imperador romano do
Ocidente, este manual recebeu o certificado de aprovação.
E, passados 530 anos de tal
certificado, continua a ser adotado até os nossos dias, como o comprovam
promotores e juízes da Lava Jato, e até mesmo alguns ministros de tribunais
superiores.
O manual de orientações é este,
o Malleus Maleficarum ou O Martelo das Feiticeiras.
Foi este compêndio que instruiu
e guiou a Igreja no combate, perseguição, tortura e morte de milhares de homens
e mulheres, estas principalmente, acusados de bruxaria e de heresia. E que hoje
instrui e direciona as ações de juízes promotores auto investidos de anjos
vingadores, da espada santa do senhor.
Modus in rebus, senhores do
Ministério Público, da Polícia Federal e do Judiciário.
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