Transcrevemos abaixo a Carta da Professora Dirce Pereira da Silva enviada ao Filósofo Henry Bugalho e publicada no Site da Carta Capital. Na carta a Professora Dirce demonstra a sua dignidade, a força de uma mulher negra e coragem para responder à altura ao presidente Bolsonaro que defendeu o trabalho infantil nas redes sociais.
“Caro
Sr. Henry,
Como
vai? Espero que este email o encontre bem. Vejo seu canal na internet, ouço e
medito sobre seus comentários e os considero muito lúcidos, razão esta pela
qual lhe escrevo para falar sobre um tema acerca do qual houve comentários
recentes por parte do Sr. Jair Messias Bolsonaro: trabalho infantil.
Espero
que minhas letras cheguem até você a fim de que, por meio de sua voz, ecoe um
brado: o trabalho infantil não pode ser aceito no Brasil do século 21 de maneira
alguma. Creio ter autoridade para falar sobre o tema.
Meu
nome é Dirce Pereira da Silva e sou de Penápolis-SP, cidade em que nasci no dia
19 de dezembro de 1934. Diferentemente de você, portanto, não sou jovem:
encontro-me a caminho dos 85 anos de idade e estou ciente de que cheguei ao
rumo final de minha vida.
Justamente
por me encontrar na etapa derradeira e última de minha existência, desejo
complementar sua fala aos nossos irmãos brasileiros porque vivi o trabalho infantil na pele. Nunca mais terei cinco,
dez ou quinze anos de idade – todo esse tempo foi perdido para vencer a fome.
O
presidente da República, nascido aqui na vizinha cidade de Glicério-SP, disse
que “desde os oito anos” fazia pequenos serviços rurais como colher e quebrar
milho, apanhar bananas e as colocar em caixa, etc. Em tom irônico, afirmou que
o dono da fazenda quase não estava por lá – seu “capataz” (aquele que dá ordens
no lugar do patrão) era Percy Geraldo Bolsonaro, ou seja, seu pai.
Aviso
desde já que quem escreve esse texto é uma preta, neta de um casal de escravos
que só foram alforriados após a Lei Áurea pelo lado paterno.
O meu
avô João começou a vida sendo chamado de “preto João”, sem nome ou sobrenome –
simplesmente apelidado como um animal qualquer. Começou a trabalhar com 4 ou 5
anos de idade, assim como a totalidade de minha família. Jamais soube quem eram
os seus pais, pois negros existiam em senzalas apenas para que se
reproduzissem.
A
minha avó Rosa teve história bastante similar à do meu avô. A diferença foi
apenas a de saber o nome de seu pai e de sua mãe, que sobreviveram até depois
de 13 de maio de 1888. Nenhum deles, porém, teve infância, vida ou velhice.
Ambos nasceram e morreram sem nunca ter aprendido a ler ou escrever, assim como
jamais viram o mar. Meu pai, nascido em 1904, questionava-me se era verdadeiro
o que ouvia falar“Dirce, aquela água toda é salgada de verdade?”.
Foi
por pouco que não tivemos morte e vida severina – a vida foi longa para quase
todos, exceto para meu avô e minha avó maternos, os quais morreram de fome bem
antes dos 30. Minha avó materna, ao que sei, chamava-se Vitória e faleceu
durante o parto da minha mãe, aos 24. Cinco meses depois, por tuberculose,
morreu o meu avô Vicente, que à época somava 27 anos de vida.
Meu pai se chamava Marinho Aurélio da Silva e minha mamãe era Maria Rita Pereira da Silva,
os quais nunca foram meus “capatazes”. Nunca possuíram terra
que fosse deles e também nunca deram ordem em nome de seus chefes.
Meu
avô, minha avó, meu pai, minha mãe, meus tios e meus primos trabalhavam sim, e
muito, na colheita de café e de algodão nas fazendas aqui da região noroeste
paulista, onde eu e o presidente Jair Bolsonaro nascemos.
Assim
como toda minha família, eu fui também obrigada a
trabalhar nisso desde meus 4 ou 5 anos.
Desejo
sublinhar que o trabalho infantil não se tratava
de uma escolha.
Trabalhar
desde a infância era, para minha família, a única possibilidade de lutar
organizadamente contra a fome. Meu trabalho vinha
dessa necessidade e em nada me enobreceu,
tal como jamais fez o mesmo com minha família toda.
Talvez
esta necessidade de trabalhar para não passar fome venha desde quando meus
ancestrais africanos vieram para o Brasil. Dentro de minha família e de tantas
outras similares a ela jamais escutei que alguém se sobressaiu. A história
parecia infinita: todos nasciam para trabalhar, reproduzir-se e, em seguida,
morrer.
Se não houvesse fatalidades
excepcionais em minha família, muito provavelmente eu mesma não conseguiria
libertar-me desses grilhões da escravidão porque, embora ela já não
existisse formalmente desde 1888, ainda havia a fome… e esta, impiedosamente,
sempre nos rondava.
Quando
o senhor presidente falou em “apanhar milhos”, confesso que senti um imenso
vazio. Nunca tive um único brinquedo na vida que não fossem espigas de milho
para que fossem as minhas filhas. Todas as minhas bonecas de
milho tinham um nome, mas, já aos cinco anos de idade, eu era obrigada a
acostumar-me com a ideia de ser a pior de todas as mães, pois sequer conseguia
garantir algum futuro breve para essas “filhas”.
Será
que o presidente da República ou alguém que jamais tenha passado fome
conseguirá imaginar uma criança com 4, 5 ou 6 anos de idade que tinha espigas
como filhas, e sentia a dor mais profunda que existe quando a própria mãe as
arrancava das mãos de uma menina para cozinhá-las e as comer… e eu sequer podia
lhes ofertar um velório digno?
Sentia-me
canibalesca por ver que teria de comer minhas próprias “filhas” ou permitir que
meus pais, avós ou tios as comessem. Enquanto isso, eu chorava. Muito. O senhor
presidente não deve imaginar – e espero que jamais tenha de pensar – no quanto
é traumático para uma criancinha ter de mastigar seus brinquedos, amados como
filhos, e se calar… porque a mesa era grande, a família idem e a fome ainda
maior.
Nasci
no campo, mas durante o impulso da industrialização brasileira. Os trabalhos
começavam a ficar cada vez mais escassos, e aí a fome começou a nos matar de
forma literal.
Embora
esse fato tenha ocorrido em 1939, jamais conseguirei esquecer-me dele: muito de
longe avistei meu pai chorando enquanto conversava com minha mãe, pois ele
sempre foi ensinado a não demonstrar fraqueza perante sua família, o que
incluía desde meu avô, seu pai, até mim, a filha. Meu pai tinha medo, muito medo mesmo de que eu morresse, tal como as
outras onze gravidezes que minha mãe perdeu.
Eu
poderia ter onze irmãos, mas sou e fui filha única de um casal em plena década
de 1930. Isso não era planejamento familiar – ninguém da minha família
imaginava o que era isso. Muito ao contrário: faziam piadas sobre uma suposta
ausência de virilidade do meu pai, ou então que a mamãe era amaldiçoada, pois
“matou” sua mãe justamente no momento em que nasceu.
Até
eu tinha medo de morrer, porque se minha mãe não conseguiu levar adiante os
meus possíveis onze irmãos… por qual razão eu seria a mais forte? Somente
pudemos descobrir que minha mãe nunca teve outros filhos porque, em 1996, num
exame de rotina, o médico constatou que ela teve eritroblastose fetal.
O problema é que, em 1996, minha mãe já vivia em estado vegetativo por sofrer
do mal de Alzheimer. Eu somente pus fim àquele pesadelo da minha infância aos
quase 62 anos de idade; meu pai pôde saber de tudo cerca de três meses antes de
sua morte, a qual se deu em 01.05.1996.
Voltando
ao passado, meu pai e minha mãe se mudaram para a cidade a fim de procurar
trabalho: ele capinava terrenos, varria, carregava lixos, até que começou a
trabalhar numa olaria. A mamãe não: era lavadeira e eu, ao seu lado,
permitia-lhe ampliar o número de “freguesas”, como ela dizia.
O
vô João ainda estava vivo quando entrei para a escola e aprendi a ler e
escrever, graças a uma das “freguesas” de minha mãe. Ela comprou cadernos e
lápis. Quando vi a professora, pensei que havia encontrado finalmente o que
desejava ser mas, ao comentar isso em casa, minha avó já aconselhou o papai a
não permitir que eu sonhasse tão alto assim, pois sofreria. Nem meu pai acreditava nisso: “uma professora preta? Acho que nem pode ter alguém assim”.
Meu pai disse isto não por ser racista, mas por ser um preto analfabeto que nasceu
em 1904 e que tinha, como única visão de mundo, a necessidade de trabalhar e
sobreviver. O que se poderia esperar de um dos filhos de um casal de escravos
supostamente libertos em 13.05.1888?
Só que houve, sim, a primeira professora preta: eu. Meu pai teve muito
orgulho disso até a última frase de sua vida, quando disse “obrigado por
existir, minha filha”.
Mas,
enfim, naqueles tempos a escola pública era direcionada apenas à elite e, por
isso, o ensino era bom e os professores, todos eles, recebiam bons salários.
Dedicavam-se e eram existentes, tanto que com eles aprendi a aprender sempre.
Se sou capaz de enviar um e-mail, algo impensável na década de 1940, é porque
aprendi as lições primeiras e indispensáveis de qualquer aluno.
Havia
um único problema: os cursos eram diurnos, todos eles, porque eram destinados a
quem não trabalhava. Só vi cursos noturnos a partir da década de 1970 e, ainda
assim, com reservas. Meus pais só me permitiram estudar se eu, pela manhã,
frequentasse as aulas, mas, durante a tarde e o começo da noite, lavasse e
passasse roupas junto com minha mãe… e então, madrugada
adentro, fazia minhas lições e estudava à luz de lamparina.
Minha média de sono era de aproximadamente três horas por dia.
O
sono e a dor em meus músculos e em minhas mãos foram gritos sufocados em meu
peito até dezembro de 1954, quando me tornei professora normalista (que
lecionava para primeira a quarto anos do ensino primário). Meu avô não pôde ter
o orgulho de me ver sendo respeitada pelas mesmas pessoas que sempre
desrespeitaram a ele e à minha família toda.
Enquanto
meu pai trabalhou na olaria, seu patrão mandava-nos as roupas de sua casa para
que lavássemos. Acho que não chegava a somar 15 anos de idade quando aquele
velho perguntou ao papai por quanto ele me “venderia”. Muita gente pensa que
pobre não é honesto, mas a minha família toda sempre foi. O motivo era simples:
a única coisa que possuíamos em nossas vidas era honra. Por isso mesmo o papai
disse ao patrão que, se ele repetisse aquela pergunta novamente, seria morto… e
quase foi: houve a demissão. Foi inevitável.
Trabalhei
como professora efetiva da rede pública do estado de São Paulo por 49 anos e 08
meses, do início de 1955 até 2004, poucos antes da minha aposentadoria
compulsória (que se daria quando completasse 70 anos de idade, em 19.12.2004).
Nunca faltei ou cheguei atrasada a uma única aula durante todo esse período.
Jamais deixei de estar dentro de uma sala de aula, em contato direto com meus
alunos, e até negligenciei minha própria saúde para jamais me ausentar. Sabe
por quê? Porque, como dizia minha mãe, se eu quisesse ser respeitada por meus
colegas de trabalho, todos brancos, eu deveria ser dez vezes mais correta e
proba que eles.
Meu
salário de professora permitiu-me cuidar melhor do papai e da mamãe, a fim de
que eles pudessem ter uma velhice tranquila. Consegui fazê-lo, mas ninguém
imagina o preço que tive de pagar. Meus parentes e amigos pobres afastaram-se
de mim porque se sentiam envergonhados em falar com uma professora, ao passo
que colegas de trabalho não aceitavam a cor da minha pele.
Essa
história poderia ser interessante caso considerássemos que minha conduta permitiu me transformar na professora que por maior tempo
continuado lecionou na rede pública em toda a história do Estado de São Paulo.
Fui
homenageada pelo governador do Estado em pessoa, durante um almoço
especialmente dirigido a mim, mas… trocaria aquele almoço, aquela homenagem e
qualquer outra coisa para não sofrer o que sofri.
Não
sou tola. Sei que minha história é bonita e pode ser tocante. Tenho ciência até
mesmo de que minha trajetória poderia ser utilizada como exemplo de alguém que
veio da miséria extrema, superou tudo e encerrou sua carreira com muita
dignidade, mas somente eu sei o preço que paguei por isto. Infelizmente só me
apaixonei uma vez na vida e fui correspondida, mas ele era branco e eu não. A
mãe dele foi contrária ao casamento e, sem forças para mais lutar, eu o vi
partir para a cidade de São Paulo, onde morreu anos depois.
Não
tive amores, não tive filhos, fui ignorada durante meus primeiros vinte anos de
trabalho como professora e, às vésperas de completar 70 anos de idade,
conquistei o que me negaram ao longo de toda a vida: respeito.
A
solidão maltrata demais. Quantas pessoas deixaram de ser meus amigos por medo?
Durante minha infância, todos, sem exceção. Se minha trajetória pode ser vista
como um belo romance, asseguro: vivê-la na minha pele negra fez a carne que há
por debaixo dela sentir muita, muita dor.
Nenhuma
criança possui vocação para o crime: em 84 anos de vida posso testemunhar que
nunca tive um único cheque devolvido. Se algum dia praticasse crimes, minha mãe
e meu pai morreriam de desgosto, pois viveram honestamente… tão honestamente
que, em nove décadas de vida, jamais viram o mar.
Não
sou tola para pensar que a realidade cultural, social e política é, hoje,
similar àquela de minha época. Já não estamos em 1934. O que isto significa?
Que o senhor presidente e muitos outros já deveriam ter solucionado essa
questão há muitos anos, até mesmo para “enobrecer” seres humanos, mas na época correta.
Lugar
de criança não é no trabalho, nem no crime, nem em qualquer coisa diferente de
escola e formação.
Esforce-se
para que o Estado ofereça estudo de boa qualidade, universidade para quem assim
desejar, cursos técnicos, etc. O senhor, ao naturalizar sem pudor algum a
necessidade de trabalho infantil, dizendo que ele “não faz mal a ninguém”,
oferece às crianças e aos jovens deste país somente a servidão!
O
que pensar sobre isso? Gostaria que o presidente Jair Bolsonaro me oferecesse
uma única resposta: se uma criança com 8, 10, 12 ou
14 anos de idade perguntar-me se vale a pena trabalhar para receber UM SALÁRIO
MÍNIMO (ou menos) como retribuição de
seu trabalho, mas ao mesmo tempo um traficante garantir e
provar a essas mesmas crianças que, no mundo do crime, elas receberão 10 MIL REAIS MENSAIS… o que elas optariam?
O
presidente acredita, de fato, que trabalhar por 998 reais ou até menos que isso
“enobrece” alguma criança ou jovem? Não estou falando
aqui de adultos, porque esses – na maioria dos casos – já têm
discernimento sobre as consequências de se envolver no mundo do crime.
Provavelmente, aliás, envolveram-se com o crime porque jamais mostraram a essas pessoas, quando ainda eram crianças, uma outra forma de mundo que não fosse a barbárie.
Crianças
e jovens ainda estão em processo de formação de valores e caráter. A escola,
garanto, é o único local em que aprenderão valores mais “nobres”. Ao propor
trabalho às crianças e aos jovens, o Presidente da República incentiva a maior
chaga desse país, que é a “opção” entre perpetuar-se na miséria física ou na miséria moral.
Peço ao senhor
presidente que tome vergonha na cara!
Perdoe-me,
jovem Henry, por considerações tão extensas, mas… não cheguei aos 84 anos de idade para ser covarde.
Demorei muitas horas para escrever tudo isso porque tive de contar com a ajuda
de terceiros para digitar. Está frio e, por tal razão, minhas mãos estão mais
trêmulas que de costume, tenho mal de Parkinson, mas estou viva, sou cidadã e
nunca compactuei com regimes ditatoriais como esses que o presidente idolatra –
incluindo a ditadura militar deste país.
Vale
lembrar que eu já era professora e tinha 30 anos de idade em 1964, quando depuseram João
Goulart e implementaram uma ditadura civil-militar no país. Um dia, se você
quiser, contarei em detalhes o quão horrível foi aquele período – chegaram a
ameaçar de MORTE minha mãe, meu pai e minha velha avó Rosa caso eu não
denunciasse meus colegas “subversivos”.
Abraços,
Dirce
Pereira da Silva”